segunda-feira, 7 de setembro de 2009

HOMENAGEM A VICTOR NUNES

Incumbiram-me os meus colegas da Tertúlia do Fado de Coimbra de dirigir algumas palavras a um companheiro que, nesta noite, é um companheiro para quem olhamos de forma diferente – o Victor Nunes. Neste momento, porém, não podemos esquecer um outro colega nosso, o Nuno de Carvalho, falecido no passado mês de Julho que, não estando fisicamente aqui, em espírito partilha certamente esta celebração de amizade, que também o enche de alegria. Outro companheiro nosso, José Miguel Baptista, não podendo estar presente por compromissos inalteráveis, nos pediu para não deixarmos de recordar ao Victor Nunes a memorável viagem de 50 dias aos EUA do Orfeon Académico de Coimbra, onde começou a longa caminhada fraterna que os vem unindo, e que nesta hora também o abraça.
É gratificante verificar, nos dias que correm, o reconhecimento público, como este que estamos a festejar, a alguém que na sua vida não tem tido cartões deste ou daquele clube, que nunca foi candidato a isto ou àquilo, que nunca procurou currículo na militância do pedantismo social. No entanto, sempre lhe conhecemos a militância no mais alto ideal, uma militância interior, que é a de estar sempre disponível para servir o seu amigo, a sociedade, enfim, quaisquer que sejam as solicitações, sejam elas vindas de meios ditos intelectuais sejam as do povo simples.
O Victor Nunes está sempre disponível para cantar, independentemente das chamadas “contrapartidas”. Sempre o conhecemos assim. E deve-se sublinhar que esta não é uma disponibilidade qualquer. Ele não está disponível em consequência de um processo de fuga ou escape (quem foge ou tenta escapar, mais tarde ou mais cedo é apanhado…).
Que se saiba, o Victor gosta de estar em casa, sente-se feliz na companhia da sua família, e também não precisava de cantar para que o trabalho lhe corresse melhor, ou para colher outros benefícios… O Victor está disponível, melhor dizendo, é disponível, porque nasceu assim, porque é do seu coração ser assim. Que felicidade!
Temos o prazer de ter o homenageado desta noite como componente e fundador da Tertúlia do Fado de Coimbra, o grupo mais antigo de Fados de Coimbra que actualmente existe no País. Não dizemos que tem os mais velhos a cantar e a tocar música de Coimbra, dizemos que a Tertúlia existe como grupo, em actividade ininterrupta, há quase 40 anos. Quase quatro décadas, no lema camoniano «cantando, espalharei por toda a parte», tendo sempre por «decano» o Victor Nunes. Conhecemo-lo ainda antes do final da década de 60. Eu tinha dezasseis, dezassete anos, e ele pouco mais de trinta. Na altura, cantava em programas com a antiga orquestra da FNAT, dirigida pelo maestro Manuel Elyseu, filho de José Elyseu, autor da célebre Balada de Coimbra. O Victor levou-me para lá. Corríamos as Casas do Povo e os pátios das aldeias da zona centro; tocávamos onde calhava. Depois veio o ciclo do Orfeon Académico e a Tuna (embora o Victor já lá cantasse e tivesse conhecido o Zeca e o Goes, entre outros). Entretanto, a Tertúlia do Fado de Coimbra nascia com a entrada do José Carlos Teixeira e, posteriormente, do Álvaro Aroso. No festival internacional de Coros organizado pelo Orfeon Académico, conhecemos o José Miguel Baptista e o Nuno de Carvalho, que chegara até nós vindo de Famalicão. A raiz estava a crescer, uma amizade que se cimentava em força, e afinidades estéticas e musicais faziam-nos atrair. E vieram então o Joaquim Matos o Mário José de Castro e o Zé Paulo, concluindo o perfil definitivo do grupo.
Quando, um dia, a história do fado de Coimbra se fizer com imparcialidade e com objectividade – se é que algum dia se fará! – terá que se escrever que o grupo de fados que o Victor Nunes ajudou a criar e ao qual sempre pertenceu, nunca deixou de cantar e tocar na rua ou em palcos, pese embora os pontos de vista políticos e sociológicos que se ditavam, antes de Abril e nos três anos subsequentes. Não vamos discutir agora a quem serve a arte, se há ou não arte pela arte, ou arte pela sociedade. Certo, certo é que a arte, neste caso a música, serve a quem livremente a gosta de a cultivar e usufruir e a quem a cria e interpreta, ou seja, neste caso, quem escuta um fado com os ouvidos da alma e a quem o toca e canta com o coração! Nós sabemos, todos sabem, que nos anos posteriores a 1974, afinal, o canto e a guitarra vêm a ser reconhecidos como identidade inalienável de Coimbra, inscrevendo-se no perfil cultural do país. Tinha acabado o “hiato oficial”, sem nunca no coração de alguns ter existido hiato. E em 1978, o nosso colega da tertúlia José Carlos Teixeira sugere ao então responsável pelos Serviços de Turismo de Coimbra, a realização de um encontro de cantores e guitarristas, a nível nacional, com todas as gerações ainda vivas de intérpretes, facto que felizmente foi um êxito, sob a forma de “1º Seminário do Fado de Coimbra”. Tinha acabado o medo; as vozes e as guitarras regressado à Sé Velha; os discos aos programas de rádio.
Por esta altura, a convite dos Serviços de Turismo de Coimbra, a Tertúlia, com o Victor a cantar «Ondas do Mar», grava o primeiro disco de fados de Coimbra depois do 25 de Abril e participa, sempre com a Tertúlia, e com a presença de outras figuras e grupos, no primeiro programa televisivo, também depois de Abril.

Entretanto, isto é, durante a década de 70, a Tertúlia inaugura as Serenatas de Coimbra no Algarve, que alimentou ininterruptamente durante 10 anos, que se mantiveram, com outros grupos, por mais anos, embora em moldes e contextos bem diferentes dos iniciais.
Das viagens nem é bom começar, porque, por muito agradáveis que fossem as descrições e histórias, para os caros amigos aqui presentes, seria cansativo e extenso o relato. Mas se tempo houvesse, seria quase missão impossível!
O Victor cantou para reis, imperadores, rainhas, princesas, clérigos e para as pessoas simples do povo. Muitas delas não sabendo uma nota de música entendiam e entendem ainda a mensagem que ele continua a transmitir, isto é, o sentimento pessoal que sempre molda aquilo que canta. Ele é uma espécie de lavrador que pode nem sempre manobrar a tesoura de podar com a técnica do manual de instruções, mas que a videira fica podada, isso fica! E a vara geme e depois dá sumo. E dá vinho, que ele reparte fraternalmente. Apesar do Victor também apreciar um bom vinho, esse licor da videira a que me referi é outro, é o licor da metáfora, o fermento de qualquer verdadeira confraria! Porque não há confraria desta ou daquela comida, desta ou daquela bebida, se não existe antes a real confraria dos sentimentos, do frade com o outro frade, de irmão com irmão. E que especialidade é esta? É o licor da disponibilidade que o Victor tem naturalmente, o estar sempre pronto, porque sabe da alegria de comunicar através do que canta.
Esculca, Coja… terras que têm dado homens de têmpera, como o Victor. E só pessoas de têmpera podem ajudar a temperar este mundo tão destemperado. Esperemos assim que o Victor continue a temperar…
Caros amigos, muito se fala actualmente em instituições de utilidade pública. Se é verdade que os indivíduos juntos operam mais e melhor do que isolados, o certo é que o verdadeiro valor individual, mesmo quando evidente, actualmente tende a não ser reconhecido, nem sequer notado, já que a época costuma ser para heróis aberrantes e fúteis. Mas, pela solidariedade, dotes de “ave canora” e disponibilidade para o serviço, deste nosso homenageado, bem se poderia dizer, contrariando certa rotina de pensamento, que o Victor Nunes é um indivíduo de utilidade pública, , o mesmo é dizer de benefício público. Oxalá não lhe cobrem nenhuma taxa por isto, ou lhe exijam algum papel!...
Por tudo isto e o mais - o muito mais que ficou por dizer - não podemos terminar sem contudo lhe outorgarmos um merecido título. A autoridade para tal não decorre de currículo académico, institucional ou outro. Decorre do currículo da sua vida em prol da bela causa que é a de cantar Coimbra, cantar Portugal, cantar um modo singular de estar no mundo. Por isso, em nome da Tertúlia do Fado de Coimbra, outorgamos a Victor Gonçalves Nunes, o título de Doutor Honoris Causa, perdão, Cantor Honoris Causa. É com toda a amizade e reconhecimento que, já de seguida, lhe entregaremos uma pequena lembrança em cuja face se pode ler «Ao Victor Nunes, dos companheiros da Tertúlia do Fado de Coimbra 5-09-09».
Antes, porém, de o fazer há que acrescentar o seguinte: temos por costume adoptar o conselho da frase de Fernando Pessoa «A palavra falada é um acto social; a palavra escrita é um acto cultural, civilizacional». Por isso, resolvemos escrever. Para que conste. Modestas mas sinceras palavras que, prazenteiramente, colocamos nas mãos do Victor, e que estarão disponíveis a partir de agora. Poderia ser de outra maneira, para um homem cujo lema tem sido o de estar sempre disponível?

Coja, 5-9-09

A Tertúlia do Fado de Coimbra

Eduardo Aroso,
José Carlos Teixeira,
Álvaro Aroso,
José Miguel Baptista,
Joaquim Matos,
José Santos Paulo
(texto de homenagem ao Victor, em Coja, em 5-9-09)

1 Comentários:

Anonymous Nuno Tavares disse...

Desconhecia a realização desta homenagem. Justíssima homenagem ao Artista; e ao Homem "generoso e bom", como o saudoso Orfeon Académico de Coimbra, em cujas fileiras cantámos (recordo o "Meu Amor Vem Sobre as Ondas", o maior êxito do Vítor nos Estados-Unidos, em 1962, na inesquecível digressão do OAC, referida no início do texto)...
Um abraço forte e solidário, com a velha estima deste teu velho amigo,
NT

7 de setembro de 2009 às 18:40  

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