quinta-feira, 18 de junho de 2009

Citolão, Guitarrão ou Guitolão?

Domingo, Junho 19, 2005
9. Citolão, Guitarrão ou Guitolão?
A Guitarra, que segundo dizem, teve a sua origem na Gram-Bretanha, he hum instrumento, que pela sua harmonia, e suavidade tem sido aceito por muitos Póvos, [...] e vendo eu que a naçaõ Portugueza a tinha tambem adoptado, e se empenhava em tocalla com a maior perfeiçaõ, desejando concorrer para a intrucção dos meus Nacionaes, com esse pouco cabedal que possuo, por naõ haver Tractado algum que falle desta materia, compus o presente Opusculo, [...]
(António da Silva Leite, Estudo de Guitarra [...]. Porto, 1796, II, p. 25)

Conheci pessoalmente o compositor e exímio guitarrista Carlos Paredes (Coimbra, 1925-Lisboa, 2004) só na década de 1972, data que coincidiu com o meu regresso a Portugal depois de uma larga estada na Suiça, onde estudei na Schola Cantorum Basiliensis, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Fomos apresentados por um amigo comum, permitindo desde logo - graças à sua extrema amabilidade e simpatia - uma frutuosa troca de pontos de vista sobre as mais variadas matérias, mas onde a música clássica (sobretudo a do período barroco) e os instrumentos de corda dedilhada, em particular, eram o tema mais frequente dos nossos longos telefonemas (podiam durar várias horas!). Nessa altura Carlos Paredes vivia na Estrada de Benfica (paredes meias com o meu amigo e colega, Rui Vieira Nery). Só muito mais tarde, por volta de 1982, quando este virtuoso guitarrista se mudou para a Avenida do Uruguai, a nossa cavaqueira deixou de se fazer via telefónica, sendo substituída por passeios a pé, ao cair da tarde, quase sempre em frente da Igreja de Benfica ou da Pastelaria Nilo, que frequentava com assiduidade.
Carlos Paredes sempre se mostrou para comigo de uma extrema simplicidade e humildade, algumas vezes bastante desconcertante diga-se em abono da verdade, pois invertia frequentemente o papel de um Mestre incontestável que sempre foi (e será, ainda que estejamos privados da sua presença física), num aluno ávido de novos conhecimentos. Foi num desses longos telefonemas que lhe falei de um certo monge beneditino de nome Domingos de S. José Varela (familiar de Reynaldo Varela, também ele guitarrista, violista, compositor e célebre cantor de Fados no virar do séc. XIX). No seu tratado, que intitulou Compendio de musica, theorica, e prática [...] medidas para dividir os braços das violas, guitarras, &c. (Porto, 1806), fala pela primeira vez, a meu conhecimento, de um instrumento que chamou Guitarrão:

A Guitarra, que está em uso, se póde aperfeiçoar, accrescentado-lhe huma 7.ª corda nos bordões, com a seguinte ordem: 1.ª em G, 2.ª em E, 3.ª em C, 4.ª em A, 5.ª em F, 6.ª em D, 7.ª em B, bmol: principiando em G sobreagudo, e acabando e Bmol grave. Sendo Guitarraõ de tres palmos escassos de comprido, ou 22 pollegadas desde o cavallete até á pestana, haverá a seguinte ordem: 1.ª em D, 2.ª em B, 3.ª em G, 4.ª em E, 5.ª em C, 6.ª em A, 7.ª em F; principiando em D agudo, e acabando em F sub-grave. [...] ficando a dedilhaçaõ muito facil na formaçaõ dos tons, e nas volatas. A oitava do Guitarraõ tem palmo, e meio do cavallete á pestana, e a mesma ordem de cordas, affinadas em 8.ª acima das do Guitarraõ. (op. cit. p. 53).

Desconheço a data em que Carlos Paredes encomendou, ao violeiro Mestre Gilberto Grácio, a construção do instrumento que acima se mostra (ver dois Posts abaixo). No entanto a 19 de Julho de 1974 fez uma gravação, para a casa Valentim de Carvalho, já com este instrumento que em muito se assemelha morfologicamente com o Guitarrão descrito pelo monge beneditino. Neste disco, intitulado Manuel Alegre com Carlos Paredes "É Preciso um País" (LP, Decca/A Voz e o Texto, SLPDR 4000, 1974), Carlos Paredes improvisa um acompanhamento com a viola, com a tradicional guitarra portuguesa, e - segundo se lê no texto que acompanha este registo - também usa pela primeira vez "[...] o célebre "guitarrão" ou, como ele próprio o definiu, "citolão" - uma guitarra portuguesa modificada que abrangesse simultaneamente as escalas da guitarra portuguesa e da guitarra clássica [sic]". Estas notas remetem o leitor para um texto complementar escrito por João Bengala (violista, compositor e cantor), onde afirma o seguinte: "Provavelmente Carlos Paredes, nas suas pesquisas, encontrou referência técnica a ele [citolão] por Silva Leite, profundo teórico e compositor para Guitarra Portuguesa do séc. XVIII, imaginando desde logo um instrumento híbrido, harmonicamente auto-suficiente, tal como a Guitarra Clássica espanhola [sic]. No essencial trata-se de uma ampliação da Guitarra Portuguesa, também com seis cordas duplas, tendo no entanto um braço mais longo bem como uma caixa de ressonância maior. Apesar de não ter passado da fase de protótipo, construído por Gilberto Grácio, Paredes extrai dele uma sonoridade majestosa dado o seu timbre mais grave, um intervalo musical de quarta abaixo da afinação da Guitarra Portuguesa de Coimbra."
Uma breve nota crítica ao que se afirma neste confuso e erróneo texto:
- no tratado de Silva Leite nunca é mencionado o citolão ou guitarrão;
- não consigo compreender o que o autor quer dizer com "profundo téorico";
- este executante setecentista nunca escreveu peças para a guitarra portuguesa mas sim para a Guitarra dita Inglesa (cuja afinação mais usual, do grave para o agudo, é: Dó2 - Mi2 - Sol2 / Sol2 - Dó3 / Dó3 - Mi3 / Mi3 - Sol3 / Sol3 (dez cordas, dois bordões fiados para a quinta e sexta; "As Primas, devem ser de Carrinho n.º 8.º, e naõ n.º 7.º, como muitos querem sem attenderem á proporção da Corda. As Segundas, devem ser de Carrinho n.º 6.º. As Terceiras, devem ser de Carrinho n.º 4.º. As Quartas, seraõ dous Bordoens cobertos", cf. Silva Leite, op. cit. pp. 27-28);
- quanto ao incoerente termo "Guitarra Clássica espanhola", dissertarei (numa futura posta) sobre esta errónea terminologia. Não comento a epígrafe que cita Bengala, por se tratar de uma fonte secundária (pouco digna de crédito) e oriunda da pena de Júlio Dantas (1876-1962).
Sensivelmente por volta da década de 1826, foi inserida num livro inglês de viagens (A.P.D.G, Sketches of Portuguese Life. London, 1827, cap. xii, gravura extra-texto n.º X, entre as pp. 221-223) a modinha, Cruel saudade, do célebre guitarrista Manuel José Vidigal (fl. 1795-1824). Esta canção de salão, aparece aí editada com um acompanhamento escrito para a guitarra inglesa, mas para o tocar será provavelmente necessário usar um instrumento montado com onze cordas (sete cordas: três bordões singelos mais quatro ordens duplas, talvez usando a afinação e montagem conforme é acima aconselhado por Varela, em lugar de praticar a scordatura na sexta corda). A celebridade desta modinha fez com que, além da fonte citada, apareça também anotada num manuscrito (compilado c. 1830) com um acompanhamento de viola francesa (de seis cordas simples) sendo posteriormente editada por Cesar das Neves (1841-1920) no Cancioneiro de Músicas Populares, Porto, 1902 (vol. 2.º, fasc. 31, pp. 66-67).

Quarta-feira, Agosto 10, 2005
9a. Citolão, Guitarrão ou Guitolão?
Temos conhecimento de que desde meados do século XVIII se construíam Guitarras inglesas montadas com 7 ordens de cordas (4 bordões singelos+3 ordens, ou parcelas, duplas), tendo chegado até nós vários exemplares (alguns em estado original) que se encontram dispersos por vários museus europeus. Por exemplo, no Museu da Música, em Lisboa, guarda-se um instrumento deste tipo feito por Gérard J. Deleplanque (fl. 1755-1792) em Lille (França), sem data, mas seguramente de feitura do último quartel de setecentos (MI, 276). Na etiqueta lê-se:
GÉ[RARD]D J. DELEPLANQUE / [LUTHIER,] RU[E] de la Grande / C[haus]sée coin de celle de[s] / [Dominicai]ns à Lille. 17[76?]. Marca a fogo, no tampo sob a boca: GÉRARD J. / DELEPLANQUE / A LILLE.
Esta Guitarra inglesa tem um tiro de corda de 470 mm.

(Guitarra inglesa de Gérard J. Deleplanque, P-Lmm, MI 276)
*
Dois outros instrumentos construídos por este violeiro francês podem ser estudados em Bruxelas, no museu do Conservatoire Royal de Musique. O primeiro (cota: 1525), datado de 1764 é, organologicamente, muito semelhante ao que se preserva no nosso museu (com a excepção de uma rosácea funda de pergaminho) sendo também como ele montado com 4 bordões singelos+3 ordens dupla. Quanto ao segundo (cota: 2916) - datado, Lille 1792 - trata-se de uma arqui-guitarra com teclado, montada com um primeiro cravelhal com 11 cravelhas laterais de madeira (provavelmente distribuídas do modo seguinte: 3 bordões singelos+4 ordens duplas?), enquanto que no segundo cravelhal aparecem mais duas cravelhas, também laterais, de madeira (2 bordões singelos?).
É interessante notar que em Portugal, no último quartel do século XIX, o célebre guitarrista e compositor Ambrósio Fernandes Maia (fl. 1875-1900) nos Apontamentos para um methodo de guitarra (Lisboa: Typ. Lallemant Frère, 1875; P-Ln, B.A. 1162//14 V.; cf. p. 7), diz-nos, que paralelamente à típica guitarra portuguesa usada neste período e montada com doze cordas, agrupadas em seis ordens duplas (que podiam usar tanto a afinação "natural" - igual à da Guitarra inglesa - como a do "fado corrido"), se construíam também instrumentos armados com "[...] 15 ou mais cordas [...], e que se manufacturavam tanto com cravelhas dorsais de madeira como com o carrilhão de chapa, com o tradicional sistema de parafuso sem fim accionado por uma chave de relógio, ou de "chapa de leque" (cf. MoraisG, pp. 95-116). Infelizmente nenhum instrumento de construção portuguesa com estas características chegou até nós.
Em contrapartida, conhecem-se várias Guitarras inglesas com as características organológicas acima referidas construídas em França no último quartel de setecentos por diferentes violeiros, nomeadamente o citado Deleplanque (Lille, 1792), bem como por Renault (Paris, finais do séc. XVII), Renault & Chatelain (Paris,1787) e Louis S. Laurent (Paris, 1775, cf. BainesE, pp. 43-45, n.os 261, 262, 264, 265 e 267).

No passado dia 18 de Junho, pelas 22 horas, integrado no "Festival de Música de Marvão", teve lugar nas ruínas da Cidade Romana de Ammaia, em Marvão, a primeira apresentação pública de um novo instrumento construído pelo Mestre violeiro Gilberto Grácio, sendo por ele designado de Guitolão. Este evento, que teve a honra de ser apresentado pelo Prof. Doutor Rui Vieira Nery, foi seguido de um concerto pelo guitarrista e compositor António Eustáquio, onde também participaram, além do quarteto Ibero-Americano (formado essencialmente por músicos oriundos da Orquestra Gulbenkian), o conhecido tenor Carlos Guilherme. Infelizmente, por razões de ordem profissional, não tive a oportunidade de me deslocar a este belíssimo local, perdendo assim este importante evento. A revista Actual do Jornal Expresso (n.º 1708 de 18 de Junho de 2005, pp. 16-17) dedicou-lhe uma reportagem de duas páginas, da autoria da jornalista Alexandra Carita (que suponho não possuir formação musical), intitulada: Um novo som para o mundo.
Para conhecer o som deste novo (?) cordofone de mão tive de esperar pela apresentação pública que teve lugar em Lisboa, no passado dia 6 de Julho, pelas 19 horas, na "Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa". Sala cheia sobretudo pelos muito melómanos amantes do Fado e da Guitarra portuguesa! O evento iniciou-se com umas singelas palavras da sua directora, Dr.ª Sara Pereira, seguindo-se um pequeno historial sobre a construção do instrumento proferido pelo Mestre violeiro Gilberto Grácio. Após estas duas intervenções, o já citado guitarrista António Eustáquio tocou algumas peças a solo. Infelizmente o local escolhido para esta apresentação não tem as necessárias condições acústicas para se tocar instrumentos de corda dedilhada (falta total de reverberação), prejudicando o intérprete e deturpando as reais qualidades sonoras do instrumento. Seguiu-se um período dedicado a perguntas do público respondidas sobretudo pelo Sr. Gilberto Grácio. Fiquei desse modo a saber que este Guitolão é montado com seis ordens de cordas duplas (tal como a guitarra portuguesa), tem um tiro de corda de 24,5 polegadas (= a 62,23 cm; porquê polegadas?) sendo afinado uma quinta abaixo da Guitarra de Lisboa ou uma quarta da de Coimbra, do agudo para o grave (Mi3/ Mi3; Ré3/ Ré3, Lá2/ Lá2; Mi2/ Mi2; Ré3/ Ré2; Sol2/Sol1):

Segundo as fotos que a seguir reproduzimos (ver dois Posts abaixo), o Guitolão construído por Mestre Gilberto Grácio é, do ponto de vista morfológico e organológico, muito idêntico à Guitarra portuguesa actual (tanto na versão de Lisboa como na de Coimbra), embora apresentando algumas diferenças: caixa de ressonância de maiores dimensões; braço mais longo rematado pela típica voluta; a escala de maiores dimensões, ressaltando sobre o tampo harmónico é dividida cromaticamente por 20 trastes (trastos ou pontos) de metal - 12 colocados até à junção do corpo do instrumento (no modelo da guitarra actual são só 10), sendo os restantes 8 já incrustados na parte da escala que ressalta sobre o tampo harmónico. A forma da caixa, ainda que o autor diga que "[...] foi concebida da minha ideia [sic]" é muito semelhante ao recorte em pera do corpo das guitarras inglesas setecentistas construídas pelo violeiro françês Deleplanque, cujo exemplo acima reproduzido seguramente o Sr. Grácio conheceu já que restaurou (na decada de 1978) vários instrumentos de corda dedilhada para o futuro Museu da Música (um alaúde, MI 254; uma tiorba, MI 252 e uma pandora, MI 254). As madeiras usadas são as tradicionais empregues nestes cordofones de mão: tampo harmónico em "spruce", fundo e ilhargas em pau-santo, braço em cedro do Canadá (?) e escala em ébano. Quanto à roseta colada na boca do instrumento foi aí colocada não só como ornamento mas também, e segundo as palavras do próprio violeiro "[...] para evitar que outros [constructores] soubessem como colocou a barragem interna do tampo do Guitolão [sic]"! Aliás, bocas ornamentadas com rosetas podem ser encontradas em quase todas as guitarras inglesas que conhecemos, muito particularmente nos instrumentos construídos em Braga por Domingos José Araújo (fl. 1806-1812) e que se guardam no nosso Museu da Música (MI 590 e 744). Outra particularidade da construção deste instrumento reside no facto que o tradicional cavalete (de madeira rija ou osso) não assenta sobre a pataleta - base em osso ou marfim onde se pousa o cavalete. Não é nem novidade nem "invenção" de Mestre Grácio pois já se praticava tanto nas Guitarras inglesas como portuguesas desde finais do século XVIII até nos instrumentos construídos em Portugal na década de 194o. Conheço várias guitarras construídas tanto por João Pedro Grácio (Coimbrão, Leiria, 1872-Lisboa, 1962) como pelo seu filho João Pedro Grácio Junior (Lisboa, Cacém, 1903-1967) - pai de Gilberto Grácio - que originalmente não usavam a pataleta.

Domingo, Setembro 04, 2005
9d. Citolão, Guitarrão ou Guitolão?
Segundo a informação - transmitida pelo Prof. Dr. Rui Vieira Nery - de Raul Nery (n. em 1921) e corroborada por Joel Pina (n. em 1920), o exímio guitarrista Armandinho (Armando Freire, 1891-1946) já usava, nos anos 30 ou inícios do 40, um Guitarrão, mas, infelizmente, desconhece-se o seu paradeiro!
Na sequência deste testemunho duas perguntas podem ser formuladas: O célebre guitarrista João Maria dos Anjos (1856-1889) já teria usado um Guitarrão no quinteto ou no sexteto com os quais efectou vários concertos em Portugal, no Brasil ou em Madrid? Ou ainda, as três ou quatro guitarras portuguesas que constituíam estes agrupamentos seriam todas do mesmo tamanho?
Na Europa temos conhecimento que, pelo menos desde os finais do século XV até ao XVIII, se construíram instrumentos de corda dedilhada ou palhetada (alaúdes, arqui-alaúde - tiorbas e chitarrones - cítaras, violas de mão, mandoras, colasciones, guitarras inglesas e bandolins) de vários tamanhos, que correspondiam, grosso modo, às diferentes tessituras da voz humana: soprano, alto, tenor e baixo. Não será de estranhar que esta prática se tenha mantido ao longo do século XIX e inícios do XX. Aliás, várias arqui-guitarras sobreviveram e guardam-se em museus europeus e norte-americanos (cf. BainesE, n.os 236, 237, 261, 262, 263, 264, 266 e 267; MichelZ, pp. 89-98). Ainda que em Portugal não se tenha preservado nenhum Guitarrão construído no século XIX ou durante o terceiro decénio do XX, não poderemos ignorar o testemunho fidedigno acima mencionado, a importante informação do tratadista, Frei Domingos Varela (vide posta n.º 9), bem como o que nos deixou escrito, em 1875, Ambrósio Fernandes Maia e D. L. Vieira (cf. MoraisG, p. 103 e tb. posta n.º 9a). Todos eles, e em épocas tão diferentes que oscilam entre os finais de setecentos até às decadas de 1930/40, nos confirmam a existencia e a prática no nosso País deste tipo de Guitarra.
Segundo o conselho do citado Varela, o Guitarrão deveria ter "[...] tres palmos escassos de comprimento [= a 66 cm], ou 22 polegadas desde o cavalete até á pestana, [...]", o que nos dá um tiro de corda de 55,88 cm. Se compararmos estas medidas com as usadas no designado Guitolão construído por Meste Gracio (62, 23 cm), vemos que o seu tiro de corda se aproxima bastante do preconizado pelo frade beneditino.
Não sei qual é o tiro de corda do Citolão ou Guitarrão que Carlos Paredes usou na gravação efectuada em 1974, em contrapartida poderei indicar, graças à gentil informação de Luísa Amaro, a afinação que o Mestre optou neste instrumento (do agudo para o grave): Fá3/Fá3; Dó2/Dó2; Lá2/Lá2; Fá2/Fá2; Dó3/Dó2; Sol2/Sol1, (isto é, uma quarta, duas terceiras - uma menor e outra maior - seguidas de duas quartas).
Para terminar gostaria de expressar a minha opinião sobre o nome que se deve atribuir a esta ampla guitarra portuguesa. O neologismo inventado por Gilberto Gracio não me parece apropriado já que ele tem, na sua constituição, o nome de dois instrumentos tão dispares como a Guitarra e o Violão (guit+olão), se bem que ambos pertençam à grande família dos cordofones de mão. Quanto ao uso do arcaico vocábulo Citolão parece-me também pouco convincente, pois ele diz especificamente respeito a um instrumento cuja caixa de ressonância é bastante diferente da do tipo periforme.
Creio que não é necessário inventar nenhum nome, pois ele já existe, pelo menos, desde finais do século XVIII, Guitarrão!
Este nome, inventado ou não pelo monge beneditino Domingos de S. José Varela (fl. entre c. 1806-c. 1838), aplica-se perfeitamente à tipologia deste grande cordofone de mão. Para completar a escassa informação que dispomos sobre a vida deste tratadista, seguramente o mais importante do seu tempo, copiamos o que dele nos deixou escrito um seu contemporâneo:
Fr. Domingos José Varella. - Natural de Guimarães, insigne Organista, e o melhor, que teve a Congregação Benedictina de Portugal néstes nossos tempos. Tinha amplissima instrução e conhecimentos da Musica antiga e moderna, e dos seus varios systemas: conhecia perfeitamente o mecanismo do Orgão, e tocava este bello instrumento com admiravel perfeição, e apurado gosto. Presumo que ao presente [1839] he falecido. (citado por VieiraD, p. 386)

Bibliografia (citada e de referência):
AlvarezI, M.R., "Los instrumentos musicales en los códices alfonsinos: su tipología, su uso y su origen. Alguns problemas iconograficos", Revista de Musicología, X.
CuestaH, Ismael Fernández de la, História de la música española. 1. Desde los orígenes hasta la "ars nova". Madrid: Alianza, 1983.
BainesE, Anthony, European & American Musical Instruments. Londres: B T Batsford Ltd., 1966.
GonçalvesL, Elsa & Ramos, Maria Ana, A lírica galego-portuguesa. Lisboa: Comunicação, 1983.
GroveD, The New Grove Dictionary of Nusic and Musicians, Edited by Stanley Sadie. London: Macmillan Publishers Limited, 1980.
MacKillopS, Rob, "The Scottish Contribution to the 18th-Centur Wire-strung Guittar", Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional (Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001), Lisboa: Estar/Centro de História da Arte, Universidade de Évora, 2002, pp. 37-82.
MichelZ, Andreas, Zistern. Europaische Zupfinstrumente von der Renaissance bis zum Historismus, Leipzig: Musikeninstrumenten-Museum der Universitat Leizig, 1999.
MoraisG, Manuel,“A Guitarra Portuguesa: das suas origens setecentistas até aos finais do século XIX”, Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional (Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001), Lisboa: Estar/Centro de História da Arte, Universidade de Évora, 2002, pp. 95-116.
MunrowI, David, Instruments of the Middle Ages and Renaissance. London: Oxfor University Press, 1976.
NeryH, Rui Vieira, Para uma História do Fado. Edição revista e aumentada. Lisboa: Público, Comunicação Social, SA/Corda Seca, Edições de Arte, SA, s.d., Dezembro de 2004.
PidalP, R. Menéndez, Poesia juglaresca y origenes de la literatura románicas. Problemas de historia literaria y cultural. Madrid, 1957. Sexta ed. corrigida e aumentada.
ReyI, Juan José, Los instrumentos de púa en España. Bandurria, cítola y "laúdes españoles". Madrid: Alianza, 1993, pp. 13-69.
RossiC, G. Doc, "The Cittern or English Guitar in Colonial América", Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional (Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001), Lisboa: Estar/Centro de História da Arte, Universidade de Évora, 2002, pp. 83-94.
TylerP, James, "Plucked Instruments in Barroque Opera, Oratoria, and the Cantata". Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional (Universidade de Évora, 7-9 Setembro 2001), Lisboa: Estar/Centro de História da Arte, Universidade de Évora, 2002, pp. 149-156.
VieiraD, Ernesto, Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes. Lisboa: Typographia Mattos & Pinheiro, 1900.

Manuel Morais

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Um bom artigo. Posso acrescentar que os guitarristas Luís Petroline e Júlio Silva também chegaram a tocar guitarrão; creio que sobrevive um guitarrão de 1932, mas não sei mais do que isso mesmo. Quanto a música escrita expressamente para este tipo de instrumento que sobreviva, desconheço qualquer exemplo (a modinha mencionada neste artigo é, creio que inequivocamente, para uma guitarra regular).

19 de junho de 2009 às 02:26  
Anonymous Anónimo disse...

Caro Anónimo,
Muito lhe agradecia se me pudesse contactar. O meu e-mai é o seguinte: morais@uevora.pt
Com os cumprimentos,
Manuel Morais

21 de junho de 2009 às 12:55  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial