Livro de Jorge Cravo sobre Luiz Goes
Com o apoio da Câmara Municipal de Cascais decorreu no Espaço Memória dos Exílios a apresentação do livro de Jorge Cravo " LUIZ GOES - O Neo-Modernismo na Canção de Coimbra ou o Advento da Escola Goesiana". A sessão contou com as intervenções de Isabel de Carvalho Garcia (em representação das Edições MinervaCoimbra)
de Carlos Carranca, Jorge Cravo, Luiz Goes e José Henrique Dias.
O Grupo da Canção de Coimbra "Porta Férrea" para além de ter actuado acompanhou ainda Carlos Carranca, Jorge Cravo, Camacho Vieira, José Henrique Dias e Luiz Goes
de Carlos Carranca, Jorge Cravo, Luiz Goes e José Henrique Dias.
O Grupo da Canção de Coimbra "Porta Férrea" para além de ter actuado acompanhou ainda Carlos Carranca, Jorge Cravo, Camacho Vieira, José Henrique Dias e Luiz Goes
Luis Reis Torgal, na impossibilidade de estar presente enviou um texto de apresentação, que Isabel Garcia leu a seu pedido, e que reproduzimos a seguir:
"Ao Luiz Goes, ao Jorge Cravo e à Isabel e ao José Alberto Garcia e a todos os presentes, para que perdoem a minha ausência…
Custou-me muito não ter estado na apresentação em Coimbra do livro de Jorge Cravo sobre Luiz Goes, dessa vez por incompatibilidade de dias e de horários. Por isso ainda mais me custa voltar a faltar à segunda apresentação, agora em Cascais, o lugar escolhido pelo Dr. Luiz Goes para habitar, lugar de que tenho uma imagem viva, pois a minha mulher aí estudou durante cerca de quatro anos e aí fui por vezes, mais tarde, visitar a sua tia, em cuja casa se instalou, vinda também de Coimbra. Só um motivo pessoal significativo me poderia afastar deste acontecimento, pelo que peço desculpa ao Luiz Goes, que suponho ter sido colega dos meus irmãos no Liceu D. João III, que também frequentei, ao autor Jorge Cravo, meu antigo aluno, e à editora Minerva Coimbra, que tem publicado alguns dos meus livros. Pedi, por isso, à Dr.ª Isabel Garcia o favor de ler, e com certeza lerá bem (eu leria mal, pois sou menos leitor do que comunicador), o texto que escrevi para abertura deste livro, em 23 de Maio de 2008 (já lá vão quase dois anos…!). Intitulei-o apenas, por razões que vão ver, “À maneira de Prefácio”
Mas vão permitir-me que, no fim, lhe acrescente um belo texto de António José de Almeida, personalidade que eu estudei e sobre o qual publiquei uma biografia em 2004.
Porquê? Talvez porque estamos a celebrar o centenário da República, em que me encontro metido quase todos os dias, sem que seja um militante da República de 1910, sendo todavia um republicano e um historiador do regime. Por isso preferiria falar da celebração da Res Publica, e assim não seria o centenário, mas muito mais do que isso, porque o espírito republicano, e o própria conceito, são muito anteriores à fundação da terceira república que surgiu na Europa, a portuguesa, depois da República Francesa e da Confederação Helvética, e mesmo anteriores às repúblicas americanas, sobretudo os Estados Unidos da América, nascidos em 1776. É que a essência da sua ética não é a de um regime, mas de uma verdadeira concepção de comunidade, onde é fundamental o interesse pela “coisa pública”, por oposição ao privilegium (etimologicamente, “lei privada”, ou seja, a promiscuidade entre o público e o privado, para benefício pessoal, de um grupo social ou de uma instituição). Luiz Goes é nesse sentido — se me é permitido dizer — um republicano ou um respublicano.
Mas outro motivo me levou a pensar na leitura de António José. O facto de ele ser um humanista e um político, que, ao empregar a palavra “povo”, lhe dava um sentido poético, como dizia Fernando Pessoa, num texto de 1911 ou 1912. E foi um médico, que considerou que a sua personalidade de político devia muito à sua profissão.
Aqui vai o Prefácio ou… um texto simples de quem não conhece profundamente a canção de Coimbra, nem como historiador, nem como executante, pois, como cantor, apenas fui um mau “baixo” do Coral da Faculdade de Letras. Um texto que me permiti agora corrigir algumas gralhas e acrescentar alguns detalhes.
Um prefácio é um posfácio. Toda a gente sabe. Mas porquê eu a fazer um prefácio ou um posfácio a um livro de Jorge Cravo sobre Luiz Goes?
Com certeza não foi por conhecer ou ter conhecido alguns intérpretes da canção de Coimbra — a minha terra natal e onde estudei —, a começar no autor desta obra, meu aluno de História na Universidade, passando, mais para trás, por Jorge Godinho (que saudades tenho dele!) e António Ralha, meus colegas de Universidade, António Portugal, que acompanhei em militâncias políticas, António Brojo (sempre recordado) ou José Mesquita (que felizmente mantém a sua bela voz), e alguns mais, a terminar em Camacho Vieira, das tertúlias do meu irmão Gonçalo, e Luiz Goes, que ouvia e via desde os tempos em que, muito jovem, ia com os meus pais ou os meus irmãos mais velhos às serenatas, na Sé Velha, no Penedo da Saudade ou no Penedo da Meditação. Mas… só conheci pessoalmente Luiz Goes quando apadrinhou o notável álbum Folha a Folha, de Jorge Cravo, que me habituei a levar aos meus amigos estrangeiros, para os fazer sentir a nova canção de Coimbra e para que soubessem distingui-la (lamentável confusão!) do fado de Lisboa
Não, não pode ter sido apenas por isso, até porque, há bem pouco tempo quase só gostava de ouvir as guitarras do Portugal e do Brojo, o canto do Zeca ou do Adriano, intérpretes dos tempos dramáticos que vivi, cujos disquinhos (de 45 rotações) levei no bornal do soldado quando embarquei para a Guiné em 10 de Janeiro de 1968, em vésperas de fazer 24 anos, com um velho gira-discos adquirido a prestações no “Neves dos Vidros” e levando debaixo do braço O Canto e as Armas de Manuel Alegre. Sou, para o bem e para o mal, sem me considerar ter sido um militante de qualquer movimento na crise académica de 62, da chamada “geração de sessenta”, que nas bolanhas de Mansoa encontrava, como alternativa à guerra, o gosto de ouvir as Trovas do Vento que Passa ou que cantarolava Os Vampiros nas noites de boémia do espírito e do corpo na messe de oficiais, quando das matas do Oio não se ouviam os canhões ou não explodiam, ali mesmo, as bombas.
Li o livro do Jorge Cravo, que apareceu um dia em minha casa, a pedir um Prefácio e ainda me interrogo porquê. Afinal talvez só por Amizade (esta bonita palavra, hoje tão esquecida). Ou apenas porque sabia que gostava da “canção de Coimbra” e porque nunca apreciei um certo “fado” (ainda hoje muito cantado, nas festas dos “antigos estudantes” e que considerava uma certa variante folclórica do “nacional-cançonetismo”). Ou porque ouvia Bettencourt (desse gostava) nos discos pesados do meu Pai numa velha grafonola His Master’s Voice, que comprou com o seu primeiro ordenado de “João Semana”, quando calcorreava terras de Pavia antes de Fernando Namora. Ou talvez — parece-me ser essa uma hipótese aceitável — porque estudei um pouco a história da Universidade, num dos meus livros sobre o Estado Novo… Sim, talvez por isso. Porque Jorge Cravo terá pensado que seria necessário conhecer o que se passou na longa era do Salazarismo na Universidade de Coimbra para melhor interpretar a evolução da canção coimbrã, uma canção que é nossa, de todas as terras de onde são originários os seus estudantes e que deveria ser considerada um “património nacional”, resistente ao tempo e às suas conjunturas político-sociais e estéticas. Uma canção que, “em tempo de servidão”, se transformou em balada e em canto de intervenção, que não morreu, com as “tradições académicas”, no 25 de Abril (ou em 1969), porque era também o canto da luta intemporal do Zeca, do Adriano ou do Berna, e que também pôde ressuscitar, mais tarde, como canto dolente, com a beleza romântica ou existencial, que também não tem tempo nem lugar.
O “fado de Coimbra” (como se dizia) foi também aproveitado pelo Estado Novo, como o foi o fado de Lisboa? Certamente que sim, depois de salazaristas mais ligados ao fascismo (e com isto não quero dizer que o Estado Novo não possa ser entendido como uma forma de “fascismo… à portuguesa”) terem combatido o fado, pouco adequado aliás ao voluntarismo e ao dinamismo de uma doutrina militante, de acção e de “revolução de direita”. Salazar nunca terá cantado (ou cantarolado) o fado ou colaborado numa serenata, como não via muito cinema ou não lia romances para… não “perder tempo”. Todavia, os valores folclóricos como o vira do Minho, o fandango do Ribatejo, até os cantares do Alentejo ou o corridinho algarvio, o “fado de Coimbra” ou, sobretudo depois dos anos quarenta, o fado de Lisboa (os “anos da Amália”, com divulgação cinematográfica da sua voz única no Fado, de Perdigão Queiroga, e até no polémico Capas Negras, de Armando Miranda) eram músicas “tradicionais” que consideraria — com António Ferro — ser conveniente preservar como “valor nacional”. Foi, porém, o fado de Lisboa — é sempre em Lisboa que tudo sucede ou se diz suceder — que se transformou, sobretudo para estrangeiro ver, em “canção do povo português” e que passou por ser, visto pela oposição, como um dos três FFF do Estado Novo. No entanto, já em tempo próximo — o 25 de Abril já lá ia há muito —, Amália, a notável cantora do fado, foi considerada como “símbolo nacional” e ingressou no Panteón! Não foi esse, como é natural, o destino de Zeca Afonso nem de Adriano, nem eles nem todos os que viveram a sua música o pretendiam, porque um Panteón (como as condecorações e as Academias) é quase sempre uma glorificação mais do que duvidosa, é sempre, em qualquer época, a construção do “herói da Pátria”. Não será jamais também, felizmente, esse o destino de Goes ou de Machado Soares.
A canção de Coimbra é uma criação colectiva, de elites ou de estudantes que querem compreender o povo, mas nunca poderia ser entendida como uma “canção popular”, “nacional”, no Estado Novo ou na cultura de massas do pós-25 de Abril. É esse o seu verdadeiro valor. Por isso, Luiz Goes exprime como ninguém o cantar coimbrão. Se ele é um cantor do “fado romântico”, ele é também o cantor da “canção de Coimbra”, que tem origem na estética dos “presencistas” dos anos vinte e trinta, que se forma nos anos cinquenta com as primeiras inquietações, que se forja nas lutas estudantis e nas angústias da guerra dos anos sessenta e setenta, nas solidões e no desejo de afirmação do Homem e das suas vivências. Goes é, no seu jeito, um humanista, diferente dos humanistas de esquerda militante, como foram o Zeca ou o Adriano, mas um humanista no sentido universal da poesia, afastado do romantismo artificial, como se pode ser humanista com a canção de Lisboa, apartada do marialvismo ou do “fado” (fatum), como música de um “destino marcado”. Foi assim, em boa verdade, que Amália se eternizou, não pelo “fado” mas pela “canção”, como sucederá com outros excelentes intérpretes que continuam hoje a entoar “outros fados” e canções ao som da guitarra e da viola.
Esta é a minha visão da canção de Luiz Goes, e também de Jorge Cravo, exemplos de quem sempre quis e quer ser “autêntico” (a tal “autenticidade” como suma virtude social e humana, de que falava Ortega y Gasset), qualidade que neste tempo pragmático escasseia cada vez mais, quando muitas vezes se regressa ao “nacional-cançonetismo” (até pela mão de entidades oficiais), de raiz e de oportunidade populista, quando se volta ao futebol, não ao futebol de que gostamos, mas como meio de adormecimento do sentido da vida, e a outras formas de nos afastarmos da realidade que nos leva a sonhar e a ter ideais. Goes, como Cravo, é uma voz que exprime uma consciência crítica, que alimentou e espero que vá alimentando gerações de jovens, mas que tanto se quer evitar.
Ler este livro e ouvir Luiz Goes é, pois, um exercício de inteligência, de cidadania, de sensibilidade e de amor ao Homem, que está para além dos tempos e que se encontra sintetizado, como acto de solidariedade, no refrão de uma das canções mais famosas do cantor e médico: “Homem só, meu irmão…”
Pois então permitam-me terminar com um texto de António José de Almeida, de parte de um discurso proferido pelo Presidente da República na Academia Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, em 22 de Setembro de 1922 (ano e mês do centenário da independência do Brasil). Referiu-se ali, em palavras pungentes, à sua vida de “médico rural” em São Tomé, “na linha do Equador”: “dia e noite a cavalo”, “sob um clima impiedoso, verdadeiramente inclemente, um clima de 30 graus à sombra, no tempo fresco, e de perto de 40 graus à sombra, no tempo quente”, para exercer a sua profissão “junto daqueles que precisavam dela”, fossem pretos ou brancos, ricos ou pobres. Dizia ele:
“[…] Tudo aquilo que sou o devo efectivamente à minha formação de médico.
Exercendo-a, estudando a ciência, que me deu as faculdades para exercê-la, fiquei sabendo que na vida só há uma verdade — “aquela que assenta na observação e na experiência”.
Foi como médico, cultivando a medicina, que pude ter para mim esta filosofia suprema, de que o homem deve ser sempre bom, caritativo e agasalhador […]; que o homem deve olhar sempre para o seu semelhante, ou seja branco ou preto, ou grande ou pequeno, ou homem ou mulher, ou celerado ou santo, abrigando-os, a todos, no manto da mesma ternura. […]
Se eu não tivesse sido médico, pouco mais, em qualquer caso, poderia ser do que tenho sido; poderia ser muito menos, mas, com certeza, seria uma coisa diferente, porque foi o exercício de minha profissão, foi o contacto com os meus doentes, foi o sentimento fraterno que me ligou sempre a eles, como de resto acontece a todos os médicos, que fez com que eu, na política da minha terra, tenha sido animado deste espírito de conciliação que me tem levado a querer concentrar todos os portugueses nos laços da mesma disciplina e, ao mesmo tempo, conservá-los sob o mesmo amor carinhoso e fraterno. […]
No uso dessa profissão, vendo Deus em toda a parte, na árvore, na planta, na rocha, no cristal, nas águas, nas montanhas, em toda a parte, enfim, a gente se habitua […] a aprender a dizer com a filosofia suprema da vida que animou S. Francisco de Assis — esse S. Francisco de Assis que, no momento de ver a sua cidade, ao longe, cheia de vícios, mergulhar em todas as desgraças, que podem acontecer a uma sociedade, em lugar de a maldizer, de se arrepender de a ter amado, trémulo e comovido, com os braços descarnados, voltando-se para ela disse: — “Eu te perdoo” e lhe pôs por cima a bênção amorosa e paternal — urbi et orbi.
Desta forma, talvez se compreenda ainda melhor porque resolvi terminar com um texto de António José de Almeida, que afinal foi “um modernista da oratória” e um humanista. Luiz Goes, com a sua palavra cantada, também foi um intérprete e autor modernista da canção de Coimbra. Talvez o seu regresso ao “neo-modernismo” (de que fala Jorge Cravo) se deva não só à sua bela voz que permaneceu no tempo, à sua composição musical, à sua poesia, aos escritores que leu, mas também à profissão que exerceu, na Europa e em África, na Guiné, quase na linha do Equador. Um médico, um humanista, um poeta, um homem da “canção coimbrã”, que não morre, nem nunca poderia morrer."
Coimbra, 26 de Março de 2010,
Luis Reis Torgal
Podem ver-se mais fotos em: http://minervacoimbra.blogspot.com/2010/03/luiz-goes-em-cascais.html
Etiquetas: Jorge Cravo
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