FLORES PARA COIMBRA
Música: Joaquim Fernandes da Conceição
Letra: Manuel de Melo Alegre Duarte
Incipit: Que mil flores desabrochem
Origem: Porto
Supercategoria: Canção de Coimbra
Sucategoria: composições com duas ou mais partes musicais
Arranjo para guitarra Coimbra: Francisco Filipe Martins
Data: 1969
Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
Que mil flores floresçam onde só dores
Florescem.
Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
Onde mil flores com espadas são cortadas
Que mil espadas floresçam em cada mão.
Que mil espadas floresçam
Onde só penas são.
Antes que amores feneçam
Que mil flores desabrochem.
E outras nenhumas não.
Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
Que mil flores floresçam onde só dores
Florescem.
Na 1.ª estrofe os versos cantam-se sem repetições.
Na 2ª estrofe, os dois últimos versos cantam-se e repetem-se.
Na 3ª estrofe, canta-se e repete-se o último verso.
Finaliza-se repetindo a 1.ª estrofe.
Canção em compasso 4/4 e tom de Lá menor, com duas partes musicais, gravada
no 2.º semestre de 1969 por António Bernardino, na editora Orfeu, de Arnaldo
Trindade, acompanhado à guitarra por António Portugal e Francisco Filipe
Martins e à viola de cordas de nylon por Luís Filipe Roxo.
O primeiro registo de António Bernardino, com arranjo de guitarra por
Francisco Martins, foi gravado no EP Flores para Coimbra. António
Bernardino. Porto: Orfeu, ATEP 6402, ano de 1969, da editora Arnaldo
Trindade. Deste 45rpm constavam os quatro temas seguintes:
-Flores para Coimbra (Que mil flores desabrochem), arranjo de Francisco
Filipe Martins;
-Canção com Lágrimas (Eu canto para ti um mês giestas);
-Canção do Exílio (Eu vivo lá longe, longe);
-Trova da Planície (Quando os cutelos de sombra), arranjo de Francisco
Filipe Martins.
O EP referido vendeu bem e Arnaldo Trindade não tardou a lançar o LP Flores
para Coimbra. Porto: Orfeu, SNAT 11007, de 1969, com 7 peças cantadas, nas
quais se incluem as 4 supra reportadas: Canção do Trovador, E alegre se fez
triste, Fado para um Amor Ausente, Guitarras do Meu País, Canto do Silêncio,
Cantiga para os que Partem e Trova do Vento que Passa.
Este registo viria a ser remasterizado no cd duplo Fados e Guitarradas de
Coimbra. Volume I. Lisboa: Movieplay, MOV. 30.332 A/B, ano de 1996 (disco 2,
faixa nº 11), com António Portugal/Francisco Martins (gg) e Luís Filipe (v).
António Bernardino voltou a gravar esta canção em 1983 para o programa
televisivo da RTP Tempo(s) de Coimbra e para a antologia vinil do mesmo
nome. Esta antologia conheceu uma reedição vinil em 1990 (disco 3, "Anos 50
e 60", EMI 2603851, Lado 2, faixa nº5), com remasterização em cd (1992 e 2004). No registo referenciado, António Portugal figura como co-autor do arranjo de guitarra.
Joaquim Fernandes, autor da música, é formado e doutorado em História pela Universidade do Porto, onde defendeu uma tese sobre "O imaginário
extraterrestre na cultura portuguesa". Detentor de formação musical, é docente da Universidade Fernando Pessoa, onde dirige o Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência. Oriundo da freguesia de Cedofeita, Porto, foi incorporado no sector dos transportes rodoviários no
Quartel de Santa Clara, Coimbra, em Março de 1969. Ali foi colega de António Bernardino que lhe trouxe um manuscrito com letra de Manuel Alegre e lhe solicitou que a musicasse. Joaquim Fernandes levou a letra para casa, sentou-se ao piano, compôs a melodia e trauteou-a numa cassete. De regresso ao quartel, entregou a cassete a António Bernardino e ainda chegou a deslocar-se a pelo menos um ensaio em casa de António Portugal. Agradecemos a Prof. Doutor Joaquim Fernandes da Conceição as informações prestadas em 4 de Setembro de 2004. Precedendo este texto em ca. 10 anos, os dados aqui carreados sobre a autoria do arranjo de guitarra de acompanhamento e sobre o autor da melodia são também confirmados por Armando Luís de Carvalho Homem -
A Guitarra de Coimbra em tempos de fim de tempo (ca. 1965-ca. 1973).
Apontamentos e rememorações. In Separata de ANAIS. Série História. Volume V/VI. Lisboa: UAL, 2000-2001, p. 343 e anotação 27.
Escreveu a letra Manuel Alegre, já então exilado por motivos políticos, que se havia destacado nos anos anteriores como poeta, actor amador no CITAC e figura de vulto do Movimento da Trova. O poema veio publicado no livro O canto e as armas, 1969 (reedição da Europa-América).
Flores para Coimbra é uma das composições mais belas do Movimento da Trova, criada no rescaldo da Crise Académica de 17 de Abril de 1969. Como que por ironia do destino seria totalmente esquecida pelo movimento associativo, conforme tem salientado o intérprete e estudioso da CC Jorge Cravo, perplexidade que parece confirmar as amargas conclusões de Pierre Vergniaud
ditas antes da guilhotinagem de 1793: "La révolution est comme Saturne. Elle devore ses propres enfants".
O culto da natureza e da floração não é uma invenção dos sixties, fazendo
parte das culturas comunitárias ancoradas nos ritos cíclicos desde a pré-história. Da festa das Maias romanas, ao Domingo de Ramos e Dia da Espiga dos cristãos, passando pela Primavera de Sandro Botticelli, a ideologia floral tem alimentado o imaginário das comunidades tradicionais.
Os próprios estudantes de Coimbra, com a sua Queima das Fitas, também
celebravam Floralia e Maia, tomando como símbolo maior a floração da Árvore do Ponto, com espécimes no Jardim Botânico e junto à Porta de Minerva. Para não destoar, o cortejo alegório da Queima das Fitas manteve por muitos anos a batalha das flores e a tradição ornamental de viaturas à base de verduras e flores, ontem naturais, hoje de papel, costume que se acha documentado em fotografias remontes à década de 1890 Aliás, não faltam na Alma Mater as referências vegetalistas e florais: na colação do grau de doutor, os louros evocam Apolo e os heróis da antiga Grécia; nas latadas das Faculdades, o nabo representa o longo Inverno; na Queima das Fitas, os quartanistas incineram os grelos no altar de Minerva; na antiga tourada ao lente, o repasto de novo doutorado em dia de primeira lição eram verduras; nos jogos da Académica em Lisboa era costume levar-se palha ao cavalo de D. José.
A arte sacra ocidental usou abundantemente troncos, folhas, cachos de uvas, flores, e estilizações da Árvore da Vida e da Árvore de Jessé.
Hodiernamente, a poluição, a monotonia profissional, o stresse urbano e as doenças físicas e psiquícas que lhe estão associadas fizeram explodir ideologias ecológicas, verdes, ruralistas, naturistas e os movimentos pró-agricultura biológica.
Para os que liam Mao Tsé Tung (1893-1976), cuja "revolução cultural" estava na moda na década de 1960, era familiar a frase "Deixai que as flores desabrochem e que floresçam as discussões". A palavra de ordem fora lançada em 2 de Maio de 1956 pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês, que na circunstância inaugurara o programa literário e artístico "Que cem flores desabrochem, que cem escolas rivalizem". A frase pegou no Ocidente, tendo sido atribuída a Mao. A estudiosa Mai Mei Juan nega esta paternidade, clarificando que a expressão era antiga e circulante entre a população chinesa (Cf. Aux origines de quelques maoismes linguistiques. 1956: les cent fleurs, http://www.persee.fr/web/revues/home/prescipt/article/mots_0243-6450_2001_num_66_1_2599).
De relembrar também o poema de André Pieyre de Mandiargues (1909-1991), Rose
pour une Révolution, datado de de 13 de Maio de 1968, que no calor do Mai 68 canta: Que s'ouvre donc et s'épanouisse/Une rose rouge tellement
démesurée/Qu'elle recouvrent la France entière.
Fundado em 1969, o Parti Socialiste não esqueceria o repto lançado por
Mandiargues. Nesse mesmo ano, Marc Borret, concebeu o célebre punho fechado a segurar uma rosa, símbolo partidário difundido a partir de 1971.
Um pouco antes destes acontecimentos, a contra-cultura hippie promoveu em São Francisco o Summer of Love, antecedente do Woodstock (Verão de 1969).
Com os olhos postos no Monterey Pop Festival, em Junho de 1967 John Philips musicou uma letra que daria brado na voz de Scott Mackenzie, San Francisco: If you are coming to San Francisco/Be sure to wear some flowers in your hair. Era chegada a moda do kaftan, das patilhas, das calças de boca-de-sino, das camisas de orelha de cão e das florinhas. A contracultura hippie revestia-se de florinhas nos lenços, nos cabelos, em estampas, nas capas de discos vinil. O Flower Power caminhava de par com o Black Power, o Gay Power ou o Women's Liberation.
Em Coimbra, logo após os acontecimentos de 17 de Abril de 1969, conhecidos por "Assuada ao Chefe de Estado", os estudantes organizaram a greve às aulas e implementaram a "operação balão" e a "operação flor", de que se guardam documentos fotográficos na Imagoteca Municipal de Coimbra. O regime e o ministério liderado por José Hermano Saraiva não se deixaram comover, tendo actuado com extrema dureza. O processo, conduzido pela Judiciária, resultou em numerosos volumes e apreensão de material clandestino na sede da AAC (livros de autores proibidos, panfletos e cartazes artesanais). No segundo semestre de 1969, Flores para Coimbra adquiria um peculiar acento de tristeza na voz de António Bernardino. Como compreender que o movimento associativo não tenha acarinhado esta belíssima canção? Não se vestira a capa do Lp com as cores do próprio luto académico decretado em Assembleia Magna?
Flores para Coimbra, a par de outras composições cantadas e instrumentais, ajudou a alavancar uma nova CC onde o reportório convencional viu a sua legitimidade posta em causa e experimentou dificuldades em ombrear com as sensibilidades estéticas emergentes. Foi o caso do Movimento da Balada (José Afonso/Rui Pato), do Movimento da Trova (Adriano Correia de Oliveira/António Bernardino/António Portugal/Manuel Alegre), do Novo Canto (Luiz Goes/João Bagão/António Andias), do Neo-Realismo (Carlos Paredes/Fernando Alvim), e das estéticas de construção de novidades sem ruptura assumida com a herança patrimonial (Nuno Guimarães/Eduardo Melo/Ernesto Melo/José Miguel Baptista).
Anos de "viola às costas" (sobretudo no interior do Movimento da Balada), a guitarra de Coimbra mantém-se nas demais propostas em construção, a começar por António Portugal e João Bagão. Nas vozes, aí sim, os louros consagram os barítonos (sem que tenham faltado merecidos aplausos a José Manuel dos Santos, Armando Marta ou a Fernando Gomes Alves).
Nos sixties, alguns artistas amadores da CC estão a par do tempo e forçam a CC a entrar no espírito do tempo. Os movimentos ou sensibilidades sumariamente elencados alguma coisa reflectem do que se estava a passar com o NUEVO TANGO [Astor Piazzolla, 1921-1992, novidades e rupturas desde 1955], BOSSA NOVA [desde 1958 com João Gilberto, Vinicius de Morais, António Carlos Jobim], LA NOUVELLE CHANSON [desde ca. 1954 com George Brassens, Juliette Greco, Serge Gainsbourg, Jacques Brel, Léo Ferré].
O receio e a desorientação perante as novidades estéticas alimentaram atitudes reactivas cujos contornos são ainda mal conhecidos. Em Coimbra, algumas dessas reacções poderão ser mapeadas através de vozes activas na Associação dos Antigos Estudantes e no modus operandi de Manuel Branquinho.
Em Lisboa, foram anos em que as casas de fados e os grupos residentes não souberam compreender o que se estava a passar na CC. Estigmatizando os novos movimentos, os grupos de fados integrados na indústria de entretenimento optaram por produzir e gravar reportório marcadamente reaccionário (títulos, letras, acompanhamento com tocata de fado). Cronologicamente, a concepção e produção de "verdadeiros fados de Coimbra" pela indústria fadística lisboeta coincide no plano internacional com a crise das cowboyadas em Hollywood e a sua apropriação pela indústria cinematográfica italiana. Entre 1963-1977 os realizadores italianos rodaram no sul de Espanha perto de 600 Western Spaghetti (designados "Bang-Bang à italiana" no Brasil), que facturam muito bem. Embora o fenómeno dos Coimbra Spaghetti se tenha começado a afirmar nos anos dourados da radiodifusão e do cinema do Estado Novo com figuras como Alberto Ribeiro (década de 1940), a indústria discográfica que alimentou os Coimbra Spaghetti parece secundar as datas apontadas para o sucesso de bilheteira dos Western Spaghetti (ca. 1960-ca. 1980).
Para finalizar, e retomando uma questão cara aos adversários das trovas e
baladas (sem com isto pretender dar-lhes razão), Flores para Coimbra seria um tema da CC se não fosse interpretada em conformidade com a estética conimbricense?
Transcrição: Octávio Sérgio (2010)
Pesquisa e texto: José Anjos de Carvalho e António M. Nunes
Letra: Manuel de Melo Alegre Duarte
Incipit: Que mil flores desabrochem
Origem: Porto
Supercategoria: Canção de Coimbra
Sucategoria: composições com duas ou mais partes musicais
Arranjo para guitarra Coimbra: Francisco Filipe Martins
Data: 1969
Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
Que mil flores floresçam onde só dores
Florescem.
Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
Onde mil flores com espadas são cortadas
Que mil espadas floresçam em cada mão.
Que mil espadas floresçam
Onde só penas são.
Antes que amores feneçam
Que mil flores desabrochem.
E outras nenhumas não.
Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
Que mil flores floresçam onde só dores
Florescem.
Na 1.ª estrofe os versos cantam-se sem repetições.
Na 2ª estrofe, os dois últimos versos cantam-se e repetem-se.
Na 3ª estrofe, canta-se e repete-se o último verso.
Finaliza-se repetindo a 1.ª estrofe.
Canção em compasso 4/4 e tom de Lá menor, com duas partes musicais, gravada
no 2.º semestre de 1969 por António Bernardino, na editora Orfeu, de Arnaldo
Trindade, acompanhado à guitarra por António Portugal e Francisco Filipe
Martins e à viola de cordas de nylon por Luís Filipe Roxo.
O primeiro registo de António Bernardino, com arranjo de guitarra por
Francisco Martins, foi gravado no EP Flores para Coimbra. António
Bernardino. Porto: Orfeu, ATEP 6402, ano de 1969, da editora Arnaldo
Trindade. Deste 45rpm constavam os quatro temas seguintes:
-Flores para Coimbra (Que mil flores desabrochem), arranjo de Francisco
Filipe Martins;
-Canção com Lágrimas (Eu canto para ti um mês giestas);
-Canção do Exílio (Eu vivo lá longe, longe);
-Trova da Planície (Quando os cutelos de sombra), arranjo de Francisco
Filipe Martins.
O EP referido vendeu bem e Arnaldo Trindade não tardou a lançar o LP Flores
para Coimbra. Porto: Orfeu, SNAT 11007, de 1969, com 7 peças cantadas, nas
quais se incluem as 4 supra reportadas: Canção do Trovador, E alegre se fez
triste, Fado para um Amor Ausente, Guitarras do Meu País, Canto do Silêncio,
Cantiga para os que Partem e Trova do Vento que Passa.
Este registo viria a ser remasterizado no cd duplo Fados e Guitarradas de
Coimbra. Volume I. Lisboa: Movieplay, MOV. 30.332 A/B, ano de 1996 (disco 2,
faixa nº 11), com António Portugal/Francisco Martins (gg) e Luís Filipe (v).
António Bernardino voltou a gravar esta canção em 1983 para o programa
televisivo da RTP Tempo(s) de Coimbra e para a antologia vinil do mesmo
nome. Esta antologia conheceu uma reedição vinil em 1990 (disco 3, "Anos 50
e 60", EMI 2603851, Lado 2, faixa nº5), com remasterização em cd (1992 e 2004). No registo referenciado, António Portugal figura como co-autor do arranjo de guitarra.
Joaquim Fernandes, autor da música, é formado e doutorado em História pela Universidade do Porto, onde defendeu uma tese sobre "O imaginário
extraterrestre na cultura portuguesa". Detentor de formação musical, é docente da Universidade Fernando Pessoa, onde dirige o Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência. Oriundo da freguesia de Cedofeita, Porto, foi incorporado no sector dos transportes rodoviários no
Quartel de Santa Clara, Coimbra, em Março de 1969. Ali foi colega de António Bernardino que lhe trouxe um manuscrito com letra de Manuel Alegre e lhe solicitou que a musicasse. Joaquim Fernandes levou a letra para casa, sentou-se ao piano, compôs a melodia e trauteou-a numa cassete. De regresso ao quartel, entregou a cassete a António Bernardino e ainda chegou a deslocar-se a pelo menos um ensaio em casa de António Portugal. Agradecemos a Prof. Doutor Joaquim Fernandes da Conceição as informações prestadas em 4 de Setembro de 2004. Precedendo este texto em ca. 10 anos, os dados aqui carreados sobre a autoria do arranjo de guitarra de acompanhamento e sobre o autor da melodia são também confirmados por Armando Luís de Carvalho Homem -
A Guitarra de Coimbra em tempos de fim de tempo (ca. 1965-ca. 1973).
Apontamentos e rememorações. In Separata de ANAIS. Série História. Volume V/VI. Lisboa: UAL, 2000-2001, p. 343 e anotação 27.
Escreveu a letra Manuel Alegre, já então exilado por motivos políticos, que se havia destacado nos anos anteriores como poeta, actor amador no CITAC e figura de vulto do Movimento da Trova. O poema veio publicado no livro O canto e as armas, 1969 (reedição da Europa-América).
Flores para Coimbra é uma das composições mais belas do Movimento da Trova, criada no rescaldo da Crise Académica de 17 de Abril de 1969. Como que por ironia do destino seria totalmente esquecida pelo movimento associativo, conforme tem salientado o intérprete e estudioso da CC Jorge Cravo, perplexidade que parece confirmar as amargas conclusões de Pierre Vergniaud
ditas antes da guilhotinagem de 1793: "La révolution est comme Saturne. Elle devore ses propres enfants".
O culto da natureza e da floração não é uma invenção dos sixties, fazendo
parte das culturas comunitárias ancoradas nos ritos cíclicos desde a pré-história. Da festa das Maias romanas, ao Domingo de Ramos e Dia da Espiga dos cristãos, passando pela Primavera de Sandro Botticelli, a ideologia floral tem alimentado o imaginário das comunidades tradicionais.
Os próprios estudantes de Coimbra, com a sua Queima das Fitas, também
celebravam Floralia e Maia, tomando como símbolo maior a floração da Árvore do Ponto, com espécimes no Jardim Botânico e junto à Porta de Minerva. Para não destoar, o cortejo alegório da Queima das Fitas manteve por muitos anos a batalha das flores e a tradição ornamental de viaturas à base de verduras e flores, ontem naturais, hoje de papel, costume que se acha documentado em fotografias remontes à década de 1890 Aliás, não faltam na Alma Mater as referências vegetalistas e florais: na colação do grau de doutor, os louros evocam Apolo e os heróis da antiga Grécia; nas latadas das Faculdades, o nabo representa o longo Inverno; na Queima das Fitas, os quartanistas incineram os grelos no altar de Minerva; na antiga tourada ao lente, o repasto de novo doutorado em dia de primeira lição eram verduras; nos jogos da Académica em Lisboa era costume levar-se palha ao cavalo de D. José.
A arte sacra ocidental usou abundantemente troncos, folhas, cachos de uvas, flores, e estilizações da Árvore da Vida e da Árvore de Jessé.
Hodiernamente, a poluição, a monotonia profissional, o stresse urbano e as doenças físicas e psiquícas que lhe estão associadas fizeram explodir ideologias ecológicas, verdes, ruralistas, naturistas e os movimentos pró-agricultura biológica.
Para os que liam Mao Tsé Tung (1893-1976), cuja "revolução cultural" estava na moda na década de 1960, era familiar a frase "Deixai que as flores desabrochem e que floresçam as discussões". A palavra de ordem fora lançada em 2 de Maio de 1956 pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês, que na circunstância inaugurara o programa literário e artístico "Que cem flores desabrochem, que cem escolas rivalizem". A frase pegou no Ocidente, tendo sido atribuída a Mao. A estudiosa Mai Mei Juan nega esta paternidade, clarificando que a expressão era antiga e circulante entre a população chinesa (Cf. Aux origines de quelques maoismes linguistiques. 1956: les cent fleurs, http://www.persee.fr/web/revues/home/prescipt/article/mots_0243-6450_2001_num_66_1_2599).
De relembrar também o poema de André Pieyre de Mandiargues (1909-1991), Rose
pour une Révolution, datado de de 13 de Maio de 1968, que no calor do Mai 68 canta: Que s'ouvre donc et s'épanouisse/Une rose rouge tellement
démesurée/Qu'elle recouvrent la France entière.
Fundado em 1969, o Parti Socialiste não esqueceria o repto lançado por
Mandiargues. Nesse mesmo ano, Marc Borret, concebeu o célebre punho fechado a segurar uma rosa, símbolo partidário difundido a partir de 1971.
Um pouco antes destes acontecimentos, a contra-cultura hippie promoveu em São Francisco o Summer of Love, antecedente do Woodstock (Verão de 1969).
Com os olhos postos no Monterey Pop Festival, em Junho de 1967 John Philips musicou uma letra que daria brado na voz de Scott Mackenzie, San Francisco: If you are coming to San Francisco/Be sure to wear some flowers in your hair. Era chegada a moda do kaftan, das patilhas, das calças de boca-de-sino, das camisas de orelha de cão e das florinhas. A contracultura hippie revestia-se de florinhas nos lenços, nos cabelos, em estampas, nas capas de discos vinil. O Flower Power caminhava de par com o Black Power, o Gay Power ou o Women's Liberation.
Em Coimbra, logo após os acontecimentos de 17 de Abril de 1969, conhecidos por "Assuada ao Chefe de Estado", os estudantes organizaram a greve às aulas e implementaram a "operação balão" e a "operação flor", de que se guardam documentos fotográficos na Imagoteca Municipal de Coimbra. O regime e o ministério liderado por José Hermano Saraiva não se deixaram comover, tendo actuado com extrema dureza. O processo, conduzido pela Judiciária, resultou em numerosos volumes e apreensão de material clandestino na sede da AAC (livros de autores proibidos, panfletos e cartazes artesanais). No segundo semestre de 1969, Flores para Coimbra adquiria um peculiar acento de tristeza na voz de António Bernardino. Como compreender que o movimento associativo não tenha acarinhado esta belíssima canção? Não se vestira a capa do Lp com as cores do próprio luto académico decretado em Assembleia Magna?
Flores para Coimbra, a par de outras composições cantadas e instrumentais, ajudou a alavancar uma nova CC onde o reportório convencional viu a sua legitimidade posta em causa e experimentou dificuldades em ombrear com as sensibilidades estéticas emergentes. Foi o caso do Movimento da Balada (José Afonso/Rui Pato), do Movimento da Trova (Adriano Correia de Oliveira/António Bernardino/António Portugal/Manuel Alegre), do Novo Canto (Luiz Goes/João Bagão/António Andias), do Neo-Realismo (Carlos Paredes/Fernando Alvim), e das estéticas de construção de novidades sem ruptura assumida com a herança patrimonial (Nuno Guimarães/Eduardo Melo/Ernesto Melo/José Miguel Baptista).
Anos de "viola às costas" (sobretudo no interior do Movimento da Balada), a guitarra de Coimbra mantém-se nas demais propostas em construção, a começar por António Portugal e João Bagão. Nas vozes, aí sim, os louros consagram os barítonos (sem que tenham faltado merecidos aplausos a José Manuel dos Santos, Armando Marta ou a Fernando Gomes Alves).
Nos sixties, alguns artistas amadores da CC estão a par do tempo e forçam a CC a entrar no espírito do tempo. Os movimentos ou sensibilidades sumariamente elencados alguma coisa reflectem do que se estava a passar com o NUEVO TANGO [Astor Piazzolla, 1921-1992, novidades e rupturas desde 1955], BOSSA NOVA [desde 1958 com João Gilberto, Vinicius de Morais, António Carlos Jobim], LA NOUVELLE CHANSON [desde ca. 1954 com George Brassens, Juliette Greco, Serge Gainsbourg, Jacques Brel, Léo Ferré].
O receio e a desorientação perante as novidades estéticas alimentaram atitudes reactivas cujos contornos são ainda mal conhecidos. Em Coimbra, algumas dessas reacções poderão ser mapeadas através de vozes activas na Associação dos Antigos Estudantes e no modus operandi de Manuel Branquinho.
Em Lisboa, foram anos em que as casas de fados e os grupos residentes não souberam compreender o que se estava a passar na CC. Estigmatizando os novos movimentos, os grupos de fados integrados na indústria de entretenimento optaram por produzir e gravar reportório marcadamente reaccionário (títulos, letras, acompanhamento com tocata de fado). Cronologicamente, a concepção e produção de "verdadeiros fados de Coimbra" pela indústria fadística lisboeta coincide no plano internacional com a crise das cowboyadas em Hollywood e a sua apropriação pela indústria cinematográfica italiana. Entre 1963-1977 os realizadores italianos rodaram no sul de Espanha perto de 600 Western Spaghetti (designados "Bang-Bang à italiana" no Brasil), que facturam muito bem. Embora o fenómeno dos Coimbra Spaghetti se tenha começado a afirmar nos anos dourados da radiodifusão e do cinema do Estado Novo com figuras como Alberto Ribeiro (década de 1940), a indústria discográfica que alimentou os Coimbra Spaghetti parece secundar as datas apontadas para o sucesso de bilheteira dos Western Spaghetti (ca. 1960-ca. 1980).
Para finalizar, e retomando uma questão cara aos adversários das trovas e
baladas (sem com isto pretender dar-lhes razão), Flores para Coimbra seria um tema da CC se não fosse interpretada em conformidade com a estética conimbricense?
Transcrição: Octávio Sérgio (2010)
Pesquisa e texto: José Anjos de Carvalho e António M. Nunes
Clique em baixo para aceder às fotografias relativas à crise académica de 1969
http://www.slideshare.net/sergiomorais7/crise-acadmica-coimbra-1969
Etiquetas: Partituras de Fado
1 Comentários:
A minha mais sincera congratulação a Octávio Sérgio pela fundamentado e crítico contributo a este passo da História, da Coimbra e do Portugal rebeldes, dentro e fora da Academia. Uma suave, mas também dolente recordação dessa voz quente e magoada que foi a de António Bernardino, tão ousado em pleno "território" castrense quanto eu, na argamassa da melolia e do genial poema de Manuel Alegre. Bem haja.
Joaquim Fernandes
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